quinta-feira, maio 08, 2008

O garoto de Salvador

O cheiro ácido do suor escorrente do miúdo invadia-nos o carro e enchia os olhos da nossa motorista de compaixão.

Tudo começara quando, em férias em Salvador da Baía, decidimos, estando no Pelourinho, saber onde e como era um hotel de uma cadeia Portuguesa na cidade.

A nossa motorista, uma jovem do interior não quis reconhecer que não sabia, e após curvas e contra-curvas nas estreitas ruas, lá se decidiu a perguntar a uns miúdos de rua.

Um, magro, alto, decidiu correr para a frente do carro. E rua após rua, lá ia ele, segurando com a mão o lado esquerdo dos calções, correndo descalço pelo empedrado das estreitas ruas.

Nada de especial haveria a contar se, após 500 metros de mais curvas, subidas, descidas, e outras corridas não tivéssemos reparado que ele coxeava e, perante tamanha correria, já cheios de pena e não o tivéssemos convidado para subir para o automóivel e daí indicar o resto do caminho.

Logo à entrada, apercebemo-nos. Para além daquele cheiro intenso que nos invadia o olfacto, brutal, de sangue suor e lágrimas, o fedor de uma ferida aberta numa perna inchada, uma chaga incandescente, uma fenda brilhante e nojenta, mal cicatrizada na pureza da sua pele castanha-escura.

Era o restante de uma recente fractura da tíbia, resultado de uma queda quando tentava dormir, algures num a varanda de uma casa abandonada no bairo por detrás do postal de Salvador - o Pelourinho. Caira pois não houvera espaço suficiente naquela varanda para ele, sua Mãe e irmã, de três anos.

Olhava-se aquele garoto e passava-se rapidamente do relaxamento de estar férias para aquela angústia prendedora de consciências que nos faz lembrar o quão felizardos somos na nossa saúde, riqueza, inteligência.

Não me lembro do seu nome. Deixei-lhe uma lata de leite em pó para a irmã, a sua prioridade e único pedido, alguns reais para um jantar com a Mãe num albergue e uma conta aberta na farmácia, para lhe faciliar a compra de antibiótico e anti-inflamatório. E um contacto aberto com a pobre motorista, que comovida (ela também Mãe), nos permitirá contiunuar a ajudar através de um seu amigo na cidade.

Rapaz, as minhas desculpas por te ter esfregado na cara a minha riqueza e felicidade.

Descobri-as mais e melhor nos 15 minutos que estiveste dentro daquele carro do que nos 15 meses anteiores. Orientaste-me para o que vale a pena, o que justifica.

Lembraste-me, com a tua confirmação com tudo aquilo que vives, como somos peritos na arte da auto-complacência e comiseração.

E eu, baixei o periscópio por uns dias. Porque há momentos em que precisamos de parar de querer ver, e assimilar.